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Channel: Cantar a Pele de Lontra IV
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CADERNOS BESTIAIS (segundo volume)

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HINO AO MÉDICO

Cara-de-batráquio em elegantíssimo paletó grená
olhos vítreos de licantropo lituano
Doutor Amphibia
exibe ao visitante
sua clínica geriátrica:
poltronas provençais
em lápis-lazúli
cortinas de cetim tabaco chamousse
e mobiliário colonial
em jacarandá vermelho
mesas e cadeiras torneadas
com esbranquiçados detalhes em prata
no mais fino estilo
manuelino.
Sobre a cômoda indiana
taças de darjeeling
pasteis de queijo temperado
e um cesto com revistas de viagens
para a sua incauta
clientela:
aposentados viúvas
pensionistas.
Após cada brevíssima
consulta, Doutor Amphibia
distribui pequenos envelopes
com drogas experimentais
às cobaias septuagenárias.
Secretária de cabeleira leonina
— após pintar as unhas dos delicados pés —
agenda a data do retorno
para o acompanhamento clínico.
Relatórios minuciosos são enviados
por modernos aparelhos de fax
aos laboratórios de renome internacional
para o desenvolvimento de novos produtos.

2015













HINO AO TROTE

 Para Gottfried Benn
 
Estudantes de medicina torturam jovem negra
excitados com hematomas
na pele inerme
hieróglifos marcados
a cutelo
farejam vermelho farejam
relincham
escorrendo escorrendo
ante pinças
cordas atadas nos pulsos focinheira
ataraxia nas pupilas
retalham arimãs retalham
mulher-entulho
estirada
despida de seus farrapos
liliputiana menina de quinze dezesseis
depauperada ossuda
desnuda
derrisão pela pele
escura escrava
derme-refugo para a sova
mãos-espátulas relampejam incisões
bebem medo babam
ódio
ela enrodilhada monstrenga
gentalha ratazana
para o aço
baço
homenzarrão bem-nascido destripa
não-nascida
fungo
refugo
lacraia.
 2015
Poema inspirado nas sessões de trote-tortura dos estudantes burgueses da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

 














HINO AO GARGALHANTE

Outro entredentes degusta

Andrei Vozniessiênski[1]

Bocarra degusta lagostim
suavemente temperado
com dentes-de-alho
dedos-de-moça
folhas de alecrim
em minimorangas térmicas
térmitas afoitas
para o ruidoso desjejum.
Maxilares devoram cada lasca
brancovermelha
do esquelético
monstro marinho:
degustam e gargalham
emplumados com luxuosíssimas
gravatas italianas;
degustam e gargalham
descerebrados
trepidantes
obesos magérrimos
manequins hipocondríacos
degustam e gargalham
entre as mais sérias considerações
sobre o mercado financeiro
e a balança cambial;
degustam e gargalham
trepidantes
entre goles de vinho branco
intercalados por arrotos;
degustam e gargalham
com imensos pés inchados
mergulhados nas mais terríveis
meias de seda preta
e sapatos de couro lustrosos;
degustam e gargalham
hinos de babuínos
hinos monotemáticos
de babuínos
em altissonantes
gargalhadas nasais
gargalhadas fecais
de monocromáticos
monomaníacos símios.

2015


[1] Tradução: Haroldo de Campos (in Poesia Russa Moderna)


 










ANTILABIRINTO

éstos mis alarmados compañones.

César Vallejo

À desordem de pensamentos escuros —
figuras foscas, restos roídos
nos escaninhos
da memória.
Este é o meu braço esquerdo
que por sua conta
recusou ser treva.
Este é o meu braço direito
avesso a considerações
indelineável como um pesadelo.

Absurdidade, minha fêmea
entulhada em meu desterro.
Tudo são retalhos,
figuras em folhas-de-flandres
refratadas em meu próprio minério.
Morde-se, minha memória.
Nenhuma similitude
com o lameiro do cotidiano.
Estamos quites. Ensarilhados
em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
reverbera em meus ossos:
estas quinas sem remate;
estas quinas de um antilabirinto
que sozinho percorro.
Esta é a minha clavícula;
esta é a carantonha com que insulto
as febres no espelho. Porque nada
faz sentido. Estamos quites.
Ensarilhados em nosso nevoeiro.

Absurdidade, minha fêmea
esta é a minha língua deformante,
meus jogos dissuasórios.
Porque nada faz sentido, nada.
Anjos pictóricos de estranhas asas
anunciam o próximo massacre:
corpos carbonizados numa aldeia
da Nigéria. Dois mil mortos.
Nenhuma repercussão na mídia.
São apenas negros: quem se importa?

2015

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