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Channel: Cantar a Pele de Lontra IV
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POEMAS DE MARIA ALEXANDRE DÁSKALOS

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1º. POEMA

Nasceu em  mim uma fonte

nada sabia dessa água

até encontrar as margens

desta escrita

que quis fosse lisa

como pedra mármore


2º. POEMA

Amendoeiras selvagens

em flor

a rasgar o verde

da mata de inverno.


Plenitude de maturidade

como relógio de areia

a marcar os quarenta anos.

  
3º. POEMA

Um homem ao crepúsculo

sabe que os poetas e as mulheres

percorrem as ruas da cidade

na peregrinação dificílima do amor.
Esperam-nos em caves secretas

ungüentos e odores tropicais

então, um homem tranqüilo torna fácil a nudez.

  
4º. POEMA

As velhas tias organizam velórios

e com o pêndulo do ocaso

invertem as rotas dos barcos

saídos do cais ao fim da tarde.


Ecos que já não lutam com ventos perigosos

de aromas marinhos 

anseiam chegar à ilha para ver os pássaros

e

preguiçar na promessa de uma ilusão cumprida

Ao fim da tarde...


E AGORA SÓ ME RESTAM
E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz — esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.
 
Os deuses não assistiram a isto.


* * *


talvez o nosso corpo
seja pequeno
para ser a casa
do amor

que não guarde só indícios
e
não troque só sinais e entregas
que não seja tranquilo
nem fiel à rosa
e ao fio da lâmina


* * *

cheguei às portas secretas
atravessei as passagens interditas
e
no labirinto que negou os meus passos
vi tesouros que não eram meus


* * *

Ali estão elas de cabelos brancos
lisos ou em tranças apertados.
Ali estão elas suspensas sem um suspiro,
sem uma lágrima.

Os cabelos brancos gritam
gritos alucinados.


* * *

Poeta, somos filhos da diáspora
olhamos para trás e desfilam
os que amamos.
Os deuses abandonaram-nos –
–  é  conhecer o desespero
e saber
que uma mulher ajoelhada
não os faz regressar.


* * *

O rio corre manso
fumos sobem até ao azul-cinza.
A memória dos nossos corpos
perde-se nas águas.
E as nossas palavras
desfazem-se em círculos.
Perdemo-nos quando olhamos o rio.
Saudade de chegar ao mar.


* * *

A noiva costurava com pontos de alquimia
o seu vestido branco.
Chegou a guerra e jaz morto
o noivo.
Ela não pode lavar
com o seu vestido feito de fumos e água.

Vieram os soldados e levaram-na.
Para lá, onde cada palavra
é um silêncio
e cada silêncio
um túnel
como um olho cego.


* * *

O relâmpago desfez o sonho
como a raiz ficou nua na terra seca.
Uma palavra matou a onça e a zebra.

O porto é um abismo
e
das chaminés dos barcos naufragados
saem fumos listrados.


Maria Alexandre Dáskalos nasceu no Huambo (antiga Nova Lisboa), em Angola, em 1957. Depois de ter frequentado o Colégio Ateniense e o de São José de Cluny, licenciou-se na área de Letras.  Devido aos graves problemas decorrentes da guerra civil, em 1992 vem para Portugal com a mãe e o filho, reiniciando, em Lisboa, os seus estudos em História. Filha do poeta Alexandre Dáskalos e casada com Arlindo Barbeitos, outro grande nome da poesia angolana, Maria Alexandre é hoje uma das principais vozes femininas da poesia angolana. Publicou, entre outros livros, os seguintes:  O jardim das delícias (1991), Do tempo suspenso (1998), Lágrimas e laranjas (2001).



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